segunda-feira, 1 de julho de 2013

Na Penumbra eu confesso meus pecados


Na penumbra onde me encontro, nos confins do meu castelo de cartas marcadas, sentado no trono que me confere o título de Rei dos Idiotas, posso confessar todos meus pecados, pois ninguém vai ouvi-los, e ainda que o fizessem ninguém se importaria. Outrora, nem faz tanto tempo assim, vivia nesta mesma corte, cercado por todos meus demônios, cada qual trazendo consigo uma orientação que era até então seguida à risca por mim, Mas foi então Deus, que conforme a confissão que virá a seguir, eu resolvi exterminar estes demônios, um a um, a dúvida que resta é, o que mereço por exterminar todos meus demônios? Perdão? Penitência? Ou a aprovação divina? Fica a dúvida.

Deus, espero que não se importe de conversarmos enquanto tomo meu velho jack e Desculpe pelo revólver sobre o disco da Beth Harth, o uísque tem sido minha melhor companhia nesses tempos difíceis e a arma fica ali como um bote salva vidas caso todo o resto naufrague, uma saída de emergência se é que você me entende. Mas já divaguei demais, não pretendo tomar mais do seu tempo do que seja realmente necessário.

Tudo começou quando eu estava ali, procurando alguma companhia barata pra me divertir e o primeiro demônio me disse:

 - Não vá, você pode ficar em casa com seus Dylan´s e Cash´s esperando que ela apareça, esperando que ela lhe dê alguma atenção e as coisas fúteis do dia a dia confortem o vazio em seu peito. Apague as luzes, aumente o som e espere, é o melhor a ser feito.

Sem pestanejar, arremessei-o pela janela e não senti remorso algum quando vi a mancha vermelha se espalhando em volta da silhueta imóvel na calçada. Fechei a janela, acendi um cigarro, servi-me de mais uma dose e fui para a cozinha preparar algo pra comer. Foi então que sentado na banqueta da cozinha ali estava o segundo deles, ao me ver abrindo a geladeira sorriu e disse:

- Você não precisa de comida, já tem toda a energia que precisa naquela garrafa e no seu maço de cigarros – disse enquanto apontava para a estante repleta de garrafas de bebida – não precisa perder seu tempo cozinhando e cuidando dessas coisas fúteis. Está pensando que você é o que? Algum tipo de padre ou bancário?

No primeiro momento, aquilo fez sentido, não sentia fome na verdade, tampouco necessidade de comer, mas depois de alguns segundos ali parado, me lembrei que mais do que saciar a fome, aquilo era parte de todo um processo de estar bem consigo mesmo, ocupar o tempo e manter-me saudável, cinicamente fui até o armário, peguei um cutelo desses pesados e arremessei na direção do pobre demônio sentado na banqueta, acertando-o em cheio na testa, naquele mesmo instante caído ao lado da porta o demônio transformou-se em cinzas.

Alguma poucas horas depois lá estava eu sentado no balcão do bar, embalado pelos acordes de uns blues e entenrecido por um velho scoth, conforme o tempo passava notei um belo par de olhos castanhos flertando em minha direção, por algum tempo agi como se não fosse comigo, pois custei um pouco a crer que de fato era direcionado a mim aquele olhar inocente e sedutor. Quando finalmente me convenci, fui ao banheiro dar uma arrumada no visual visando à abordagem que faria.

Tão logo entrei no banheiro, em pé ao lado da porta vi outro conhecido demônio, que ao cruzar seus olhos com os meus disse num tom severo e dedo em riste:

 - Pode tirar o cavalinho da chuva meu caro... Você acha mesmo que uma senhorita bonita como aquela vai querer algo com um derrotado como... Você – e riu sarcasticamente – sem contar que, já pensou que ficar por aí vadiando te afasta cada vez mais... Dela? Retorne para sua vigília, pois um dia ela há de perceber o erro que cometeu e você precisa estar lá para não botar tudo a perder, novamente...

Como quem leva um soco no estômago, ali parei, me olhando no espelho atingido por cada uma daquelas palavras. De fato, não havia nada que alguém como eu pudesse oferecer aquele belo par de olhos castanhos, da mesma forma que no fundo, a imagem que povoava meus sonhos era a do dia em que arrependida, minha garota voltasse e eu, sem deixa-la pedir desculpas, apenas acolheria em meus braços e iniciaria um novo ciclo em nossas vidas.

Deus, como é difícil enfrentar seus demônios interiores, aqueles que sabem exatamente aonde te atingir, aqueles que com um mínimo de esforço te deixam de joelhos, entregue, esperando pela doce redenção da morte. Mas a morte não redime aqueles cujo único crime é viver, aqueles cuja a dor é tudo o que lhes sobra. A morte nesses casos, não traz redenção, e sim, sacramenta a covardia de quem fugiu a luta, e eu nunca fui dos que fogem a luta. Foi então que um lampejo de coragem brilhou dentro de mim e sem raciocinar, tomado por uma raiva repentina afoguei aquele maldito demônio na privada.

Recomposto, me arrumei e voltei para o balcão, e para o meu espanto, a garota não estava mais lá, talvez tenha desistido de esperar pelo covarde que se escondeu no banheiro, ou talvez tenha conseguido companhia melhor, fato era que – mais uma vez – a oportunidade havia passado e eu não havia tido competência em aproveitá-la. Deus, se o que dizem a teu respeito for verdade, só você sabe como me senti naquele momento e nas horas a seguir enquanto me embriagava encostado no balcão do bar. Já com o dia amanhecendo, enjoado e cambaleado voltei pra casa. Ao entrar no meu palácio funesto, qual foi minha surpresa ao ver sentado confortavelmente no meu quarto outro demônio, mas esse com um ar muito mais ancião e confiante. Ele apenas olhou pra mim enquanto eu entrava aos tropeços no quarto e disse:

- Vá descansar meu jovem, cuidarei de ti por hora e amanhã conversaremos.

Pois bem, dormi como uma pedra e ao acordar nem me lembrava do velho demônio ao meu lado, apenas tateava meu maço de cigarros e meu cinzeiro, e sentia o gosto amargo na garganta, sentei-me na cama e ouvi sua voz rouca e serena.

- Bom Dia Jovem

Virei-me de sobressalto fitando aquela figura emblemática e ali ficamos conversando por horas, diferente de todos os demônios que o precederam, aquele não me dizia o que fazer, apesar de saber tudo o que havia sido feito, ele apenas ouvia meus desabafos e sempre trazia palavras reconfortantes. Com o passar dos dias, semanas... Percebi que apesar de nunca me dizer o que fazer esse meu novo e talvez único amigo sempre entrava em minha casa com alguma bebida e cigarros. Mesmo sem dizer, implícito em tudo aquilo estava uma saída e me vi influenciado por ele.

Foi por isso Deus, exatamente por isso que o chamei aqui, Você deve estar achando estranho que nossa conversa esteja sendo acompanhada pelo velho demônio ao nosso lado, uma vez que eu disse ter exterminado a todos. Mas, na verdade percebi que este velho que nos acompanha não é um mero demônio, é apenas minha consciência se manifestando em um momento de desespero e necessidade, e eu não te chamei aqui apenas para confessar meus pecados, mas também pra ver qual é o teu conselho pra esse teu filho tão ingrato. E não me venha com aquela história de dar a outra face, ou de linhas tortas, como você já deve ter percebido, menter-me ao lado de ambos é uma missão praticamente impossível e um dos dois continuará comigo neste quarto, resta saber quem será.

Não Deus, isto não é um blefe, tampouco um leilão blasfemo, é apenas um grito desesperado por sanidade em meio a um turbilhão de possibilidades, e eu entendo seus motivos, sei também o quanto deixei a desejar como fiel servo do teu rebanho mas também faltei muito perante minha própria consciência e pago o preço por ter negligenciado a ambos. Se me arrependo disso? Talvez, mas isso não importa agora.

Senhores me desculpem a imensa presunção. Mas por anos vivi sozinho clamando pela ajuda de ambos, e só os tive agora, depois de cortejar a insanidade, e após ouvi-los e sem julgá-los pelas suas motivações tomei minha decisão, infelizmente isso significa uma despedida para um de vocês, pois não nos encontraremos mais em vida, talvez eu seja julgado por isso após minha morte, mas pra todos os que perderam a alma, pouco importa a direção que a vida toma.

Pegou a arma sobre o disco e por um segundo foi possível ver nos olhos do escolhido as pupilas dilatadas num misto de espanto e decepção. E o que se ouviu após isso foi um estampido ensurdecedor e o som rouco do corpo caindo no chão.



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